Karina Figueredo Souza[2]
Mestranda, Bolsista CAPES
Uma pandemia mundial nos tomou o ar! E convidou a repensar
nossas relações, afetos, nossa presença e ações no mundo, na cidade, em casa.
Minha primeira decisão diante do quadro de isolamento social foi olhar para a
relação com a terra. Eu decidi plantar meu primeiro pé de manjericão. Sempre
gostei muito dessa erva, tanto para consumo quanto para cuidados complementares
de saúde, então propus o seu plantio como um possível disparador de experiência,
a partir da noção desenvolvida por Jorge Larrosa Bondía (2002), em que “a
experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se
passa, não o que acontece, ou o que toca”. (LARROSA, 2002, pág. 21). O autor aponta que o “sujeito da experiência
se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade,
por sua disponibilidade, por sua abertura” (LARROSA, 2002, pág. 24), uma
passividade movida de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, uma
espécie de “disponibilidade fundamental”. E que o saber da experiência diz
respeito a como respondemos àquilo que nos acontece, aos sentidos que somos
capazes de fazer nascer. O saber da experiência seria, portanto, pessoal, particular
e pertence somente àquele que se deixou atravessar por ela.
A experiência, a possibilidade de que algo
nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase
impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar
para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar;
parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a
opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da
ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar
sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a
arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA LARROSA,
2002, pág. 24)
Começam a brotar os
pequenos ramos do manjericão, e com isso foi preciso parar para acompanhar seu
crescimento diariamente, interferindo somente com cuidados relacionados à adubação
e rega, abrindo espaço para a observação e reflexão diante dos estímulos
externos impostos em tempos de isolamento social.
Pensando a pandemia como um
acontecimento, aqui discutido a partir da perspectiva de Maurizio Lazzarato
(2006), que afirma que o acontecimento traz à tona fatos que uma época tem de
intolerável e que ao mesmo tempo faz emergir novas possibilidades de vida, nos
deparamos com o pânico associado à necessidade do consumo desenfreado, e ao
mesmo tempo, o emergir de diversas ações e campanhas solidárias, conscientes da
urgência de novas práticas diante do caos.
Essa nova
articulação de possibilidades e de desejos inaugura, por sua vez, um processo
de experimentação e de criação. É preciso experimentar aquilo que a
transformação da subjetividade implica e criar agenciamentos, dispositivos, instituições
capazes de se utilizar dessas novas possibilidades de vida, acolhendo os
valores que uma geração (que cresceu após a queda do Muro, no curso da fase de
expansão norte-americana e com o nascimento da nova economia) soube criar: novas
relações com a economia e com a política-mundo, uma maneira diferente de viver
o tempo, o corpo, o trabalho, a comunicação, outras formas de estar junto e de
entrar em conflito etc. (LAZZARATO, 2006, pág. 12)
A
consciência de fatos/atitudes inaceitáveis do nosso tempo, bem como a abertura
de possíveis, foi um dos motores para a busca de depoimentos de pessoas que se
propõe a sonhar/pensar essas formas outras de ser e estar no mundo, outros
disparadores de experiência. O manjericão floresce. Esse diálogo virtual,
envolveu conversas instigantes, que resultaram em alguns vídeos e sonhos
compartilhados. Na tentativa de sintetizar o que foi levantado nesses “encontros”,
me coloco diante de narrativas que se assemelham aos meus sonhos e desejos. Identifico
três grandes eixos dentro dessa abertura de possibilidades no pós-pandemia:
arte, comunidade e consciência do todo.
I
– Arte | Amauri Tangará, cineasta mato-grossense, deseja que a pandemia sirva
para nos despertar da corrida consumista, de acúmulo de riquezas, sem se
importar com o futuro do planeta, que segundo ele, “é a nossa única canoa
possível para navegar nesse infinito”. Lembra também da importância da arte
como instrumento de sobrevivência, de enfrentar momentos difíceis. Alexandre
Américo, potiguar e artista da dança, acredita e aposta nesse tempo como um
salto na linha evolutiva da vida enquanto sociedade, uma pausa, um respiro, uma
chance para repensar reconfigurações do mundo. Afirma que em seus atuais processos
de criação em dança, acessa um modo de carnificação de ideias que deveriam
estar na sociedade: a não violência, a conectividade, a consciência de que não
estamos sozinhos. Ressalta também a importância de lembrar, no pós-pandemia,
quando dançar para as pessoas, o que foi não ter a presença do outro, a conexão,
entre outras coisas que só encontramos quando juntos.
II
– Comunidade | Daniela Leite, atriz e diretora de teatro e Luiz Gustavo Lima,
historiador e professor, compartilham que a ideia de pensar e acreditar no
futuro começou há onze anos atrás, no nascimento de sua primeira filha, e se
renovou a menos de um ano, quando da chegada da segunda. Estão passando a
quarentena em uma comunidade na zona rural de Araxá, Minas Gerais, e
experimentando a gestão do trabalho, da economia e dos afetos. Ressaltam a noção
de pertencimento, de ajuda mútua, e o desejo de que essas práticas de partilha,
de partilha do sensível, da solidariedade sejam a tônica daqui para a frente. Mariana
Pimentel, artista da dança, produtora e gestora cultural, sonha com a construção
de comunidades autogeridas, com seus próprios protocolos de vida, cuidado e existência,
e que, empoderadas, possam resistir às estruturas hegemônicas de poder e
controle.
III
- Consciência do todo | Suely Corrêa, terapeuta e mestre em Reiki, deseja que
pensemos o nosso ambiente como um todo e aprendamos sobre a necessidade de
sermos mais solidários, de uma política social mais presente. Marcela
Mangabeira, cantora e moradora da cidade do Rio de Janeiro, deseja que as
pessoas saiam do estado profundo de negação. E que essa negação acontece
quando, de alguma maneira, alguém considera que a vida do outro tem menor
valor. Sonha com uma consciência de que somos um dentro do todo, e que não
existe um fora do todo, que as diferenças não são problemas, são beleza.
O manjericão está pronto para ser colhido. Levando em
consideração que, segundo Lazzarato (2006), o possível não é uma categoria
abstrata que designa qualquer coisa que não existe, mas que, “o mundo possível
existe perfeitamente, mas não existe fora daquilo que o expressa (enunciado,
rosto ou signo) nos agenciamentos coletivos de enunciação” (pág. 25), podemos
dizer que legitima-se uma certa realidade aos possíveis ao falar, ao expor
aquilo que, de alguma maneira, nos afeta, nos faz pensar o mundo. Está dito, é
possível!
O mundo possível
existe, mas não existe mais fora daquilo que o exprime: os slogans, as imagens
capturadas por dezenas de câmeras, as palavras que fazem circular aquilo que "acaba
de acontecer" nos jornais, na internet, nos laptops, como um contágio de
vírus por todo o planeta. O acontecimento se expressa nas almas, no sentido em
que produz uma mudança de sensibilidade (transformação incorporal) que cria uma
nova avaliação: a distribuição dos desejos mudou. Vemos agora tudo aquilo que
nosso presente tem de intolerável, ao mesmo tempo que vislumbramos novas
possibilidades de vida. (LAZZARATO, 2006, pág. 21-22)
A atriz Denise Fraga, em um dos vídeos que compõe uma
série realizada por ela em seu canal em uma plataforma digital, afirma que
existem pessoas que acreditam que a pandemia é uma realidade incontornável, “portanto
estão flexibilizando os cuidados e o isolamento”. Ao mesmo tempo, acredita que
exista uma outra maneira de passarmos por isso. Ela propõe pensarmos a pandemia
como um terremoto que aconteceu nas nossas vidas, e que necessariamente, ele
vai tirar as coisas do lugar. Neste caso, então, uma abertura de possíveis é manter-se
firme, disciplinado, “consciente de que é um sacrifício mesmo, e que ele é necessário,
para quem sabe um dia se chegar a uma renovação”. Logo, podemos pensar que está
tudo bem se tivermos, por enquanto, muito mais perguntas, que respostas. Em um
mundo em que portas se fecham, que janelas se abrem? Quantos outros pés de
manjericão podemos plantar?
A partir desse plantio
inicial, me propus um desdobramento: ocupar o quintal. Fazer dele um lugar de
estar. Instalei uma rede, para suspender o tempo, plantei muitas outras plantas
e ervas, para repensar o bem estar e a alimentação, estabeleci a rotina do
regar/cuidar, para me conectar com esse microcosmo onde existir é possível. E
estou respirando melhor.
Referências:
LARROSA, Jorge Bondía.
Notas sobre a experiência e o saber de experiência.
Revista Brasileira de Educação. 2002, (19), 20-28. ISSN: 1413-2478. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27501903.
Acesso em 10 de junho de 2020.
CINCO FASES | HORAS
EM CASA #06. Produção de Adriana Tavares.
Intérprete: Denise Fraga. Roteiro: Cassia Conti e Rafael Gomes. São Paulo: Eu de Você, 2020. 1 vídeo (8 min).
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZF2tcyKbgoY
Acesso em: 11 de julho de 2020.
FINLEY, Ron. Um
jardineiro de guerrilha no centro-sul de Los Angeles. Palestra proferida no
TED2013. Disponível em: https://www.ted.com/talks/ron_finley_a_guerrilla_gardener_in_south_central_la/details?utm_source=facebook.com&utm_medium=social&utm_campaign=tedspread&fbclid=IwAR2REYxxlsnkiXE5Cv1eBNMfJeLfIWL0KJDlaAgTpp-WV82ap2xqTOQCstY.
Acesso em 09 julho de 2020.
GRANDI, Telma Sueli. Mesquita. Tratado das plantas medicinais: mineiras, nativas e cultivadas. 1. Ed
– Dados eletrônicos. Belo Horizonte: Adaequatio Estúdio, 2014.
LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo.
Tradução Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
(Coleção A Política no Império). ISBN 85-200-0736-8.
[1] Texto de encerramento da
Disciplina Poéticas Contemporâneas I – Estéticas Emergentes na cidade,
ministrada pela Prof.ª Dr.ª Maria Thereza de Oliveira Azevedo – PPG ECCO –
UFMT.
[2] Mestranda pelo Programa de PPG em
Estudos de Cultura Contemporânea, orientanda da Prof.ª Dr.ª Maria Thereza de
Oliveira, Bolsista CAPES. E-mail: karinaconfrade@gmail.com.
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