quarta-feira, 15 de julho de 2020

MUNDO POSSÍVEL PÓS-PANDEMIA: CONEXÕES FEITAS A PARTIR DE UM PÉ DE MANJERICÃO




Karina Figueredo Souza[2]
Mestranda, Bolsista CAPES

Uma pandemia mundial nos tomou o ar! E convidou a repensar nossas relações, afetos, nossa presença e ações no mundo, na cidade, em casa. Minha primeira decisão diante do quadro de isolamento social foi olhar para a relação com a terra. Eu decidi plantar meu primeiro pé de manjericão. Sempre gostei muito dessa erva, tanto para consumo quanto para cuidados complementares de saúde, então propus o seu plantio como um possível disparador de experiência, a partir da noção desenvolvida por Jorge Larrosa Bondía (2002), em que “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca”. (LARROSA, 2002, pág. 21).  O autor aponta que o “sujeito da experiência se define não por sua atividade, mas por sua passividade, por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura” (LARROSA, 2002, pág. 24), uma passividade movida de paixão, de padecimento, de paciência, de atenção, uma espécie de “disponibilidade fundamental”. E que o saber da experiência diz respeito a como respondemos àquilo que nos acontece, aos sentidos que somos capazes de fazer nascer. O saber da experiência seria, portanto, pessoal, particular e pertence somente àquele que se deixou atravessar por ela.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (BONDÍA LARROSA, 2002, pág. 24)

Começam a brotar os pequenos ramos do manjericão, e com isso foi preciso parar para acompanhar seu crescimento diariamente, interferindo somente com cuidados relacionados à adubação e rega, abrindo espaço para a observação e reflexão diante dos estímulos externos impostos em tempos de isolamento social.
Pensando a pandemia como um acontecimento, aqui discutido a partir da perspectiva de Maurizio Lazzarato (2006), que afirma que o acontecimento traz à tona fatos que uma época tem de intolerável e que ao mesmo tempo faz emergir novas possibilidades de vida, nos deparamos com o pânico associado à necessidade do consumo desenfreado, e ao mesmo tempo, o emergir de diversas ações e campanhas solidárias, conscientes da urgência de novas práticas diante do caos.

Essa nova articulação de possibilidades e de desejos inaugura, por sua vez, um processo de experimentação e de criação. É preciso experimentar aquilo que a transformação da subjetividade implica e criar agenciamentos, dispositivos, instituições capazes de se utilizar dessas novas possibilidades de vida, acolhendo os valores que uma geração (que cresceu após a queda do Muro, no curso da fase de expansão norte-americana e com o nascimento da nova economia) soube criar: novas relações com a economia e com a política-mundo, uma maneira diferente de viver o tempo, o corpo, o trabalho, a comunicação, outras formas de estar junto e de entrar em conflito etc. (LAZZARATO, 2006, pág. 12)

A consciência de fatos/atitudes inaceitáveis do nosso tempo, bem como a abertura de possíveis, foi um dos motores para a busca de depoimentos de pessoas que se propõe a sonhar/pensar essas formas outras de ser e estar no mundo, outros disparadores de experiência. O manjericão floresce. Esse diálogo virtual, envolveu conversas instigantes, que resultaram em alguns vídeos e sonhos compartilhados. Na tentativa de sintetizar o que foi levantado nesses “encontros”, me coloco diante de narrativas que se assemelham aos meus sonhos e desejos. Identifico três grandes eixos dentro dessa abertura de possibilidades no pós-pandemia: arte, comunidade e consciência do todo.
I – Arte | Amauri Tangará, cineasta mato-grossense, deseja que a pandemia sirva para nos despertar da corrida consumista, de acúmulo de riquezas, sem se importar com o futuro do planeta, que segundo ele, “é a nossa única canoa possível para navegar nesse infinito”. Lembra também da importância da arte como instrumento de sobrevivência, de enfrentar momentos difíceis. Alexandre Américo, potiguar e artista da dança, acredita e aposta nesse tempo como um salto na linha evolutiva da vida enquanto sociedade, uma pausa, um respiro, uma chance para repensar reconfigurações do mundo. Afirma que em seus atuais processos de criação em dança, acessa um modo de carnificação de ideias que deveriam estar na sociedade: a não violência, a conectividade, a consciência de que não estamos sozinhos. Ressalta também a importância de lembrar, no pós-pandemia, quando dançar para as pessoas, o que foi não ter a presença do outro, a conexão, entre outras coisas que só encontramos quando juntos.
II – Comunidade | Daniela Leite, atriz e diretora de teatro e Luiz Gustavo Lima, historiador e professor, compartilham que a ideia de pensar e acreditar no futuro começou há onze anos atrás, no nascimento de sua primeira filha, e se renovou a menos de um ano, quando da chegada da segunda. Estão passando a quarentena em uma comunidade na zona rural de Araxá, Minas Gerais, e experimentando a gestão do trabalho, da economia e dos afetos. Ressaltam a noção de pertencimento, de ajuda mútua, e o desejo de que essas práticas de partilha, de partilha do sensível, da solidariedade sejam a tônica daqui para a frente. Mariana Pimentel, artista da dança, produtora e gestora cultural, sonha com a construção de comunidades autogeridas, com seus próprios protocolos de vida, cuidado e existência, e que, empoderadas, possam resistir às estruturas hegemônicas de poder e controle.
III - Consciência do todo | Suely Corrêa, terapeuta e mestre em Reiki, deseja que pensemos o nosso ambiente como um todo e aprendamos sobre a necessidade de sermos mais solidários, de uma política social mais presente. Marcela Mangabeira, cantora e moradora da cidade do Rio de Janeiro, deseja que as pessoas saiam do estado profundo de negação. E que essa negação acontece quando, de alguma maneira, alguém considera que a vida do outro tem menor valor. Sonha com uma consciência de que somos um dentro do todo, e que não existe um fora do todo, que as diferenças não são problemas, são beleza.
O manjericão está pronto para ser colhido. Levando em consideração que, segundo Lazzarato (2006), o possível não é uma categoria abstrata que designa qualquer coisa que não existe, mas que, “o mundo possível existe perfeitamente, mas não existe fora daquilo que o expressa (enunciado, rosto ou signo) nos agenciamentos coletivos de enunciação” (pág. 25), podemos dizer que legitima-se uma certa realidade aos possíveis ao falar, ao expor aquilo que, de alguma maneira, nos afeta, nos faz pensar o mundo. Está dito, é possível!

O mundo possível existe, mas não existe mais fora daquilo que o exprime: os slogans, as imagens capturadas por dezenas de câmeras, as palavras que fazem circular aquilo que "acaba de acontecer" nos jornais, na internet, nos laptops, como um contágio de vírus por todo o planeta. O acontecimento se expressa nas almas, no sentido em que produz uma mudança de sensibilidade (transformação incorporal) que cria uma nova avaliação: a distribuição dos desejos mudou. Vemos agora tudo aquilo que nosso presente tem de intolerável, ao mesmo tempo que vislumbramos novas possibilidades de vida. (LAZZARATO, 2006, pág. 21-22)

 Em uma de suas palestras, o jardineiro estadunidense Ron Finley discorre sobre sua preocupação com a saúde das pessoas frente ao que elas consomem. Defende que ao mesmo tempo que a comida é o problema, por conta de todas as doenças associadas ao consumo de alimentos produzidos a base de agrotóxicos, ela também é a solução, quando temos a consciência da importância do consumo de alimentos orgânicos e até mesmo da possibilidade de plantarmos a nossa comida. “Plantar sua própria comida, é como emitir seu próprio dinheiro. É surpreendente o que a terra pode fazer. Para mudar a comunidade, tem de se mudar a composição do solo, e nós somos o solo”. Pensando nisso, nas questões discutidas nesse texto, nos depoimentos, percebi que o pé de manjericão é minha abertura de possíveis, o despertar para a experiência, para a conexão com a comunidade em que estou inserida, do meu fazer artístico, da consciência de ser parte no todo. A primeira receita com manjericão foi preparada. Com ela surge a necessidade de pesquisar mais sobre as propriedades desta erva. Telma Grandi (2014), em um extenso estudo sobre plantas medicinais, afirma que o manjericão além de ser “uma herbácea caracterizada pelo cheiro agradável liberado de suas folhas” (pág. 816), tem toxicidade desconhecida, e é empregada como digestiva, carminativa e edulcorante, ou seja, além de auxiliar no processo de digestão, impede a formação de gases estomacais/intestinais ou expulsa-os, e pode ser usada como adoçante ou substância que mascara o sabor desagradável. Me pareceu uma erva muito apropriada para os enfrentamentos em tempos de pandemia.
A atriz Denise Fraga, em um dos vídeos que compõe uma série realizada por ela em seu canal em uma plataforma digital, afirma que existem pessoas que acreditam que a pandemia é uma realidade incontornável, “portanto estão flexibilizando os cuidados e o isolamento”. Ao mesmo tempo, acredita que exista uma outra maneira de passarmos por isso. Ela propõe pensarmos a pandemia como um terremoto que aconteceu nas nossas vidas, e que necessariamente, ele vai tirar as coisas do lugar. Neste caso, então, uma abertura de possíveis é manter-se firme, disciplinado, “consciente de que é um sacrifício mesmo, e que ele é necessário, para quem sabe um dia se chegar a uma renovação”. Logo, podemos pensar que está tudo bem se tivermos, por enquanto, muito mais perguntas, que respostas. Em um mundo em que portas se fecham, que janelas se abrem? Quantos outros pés de manjericão podemos plantar?
A partir desse plantio inicial, me propus um desdobramento: ocupar o quintal. Fazer dele um lugar de estar. Instalei uma rede, para suspender o tempo, plantei muitas outras plantas e ervas, para repensar o bem estar e a alimentação, estabeleci a rotina do regar/cuidar, para me conectar com esse microcosmo onde existir é possível. E estou respirando melhor.

Referências:

LARROSA, Jorge Bondía. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. 2002, (19), 20-28.  ISSN: 1413-2478. Disponível em: https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=27501903. Acesso em 10 de junho de 2020.

CINCO FASES | HORAS EM CASA #06.  Produção de Adriana Tavares. Intérprete: Denise Fraga. Roteiro: Cassia Conti e Rafael Gomes. São Paulo: Eu de Você, 2020. 1 vídeo (8 min). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZF2tcyKbgoY Acesso em: 11 de julho de 2020.

FINLEY, Ron. Um jardineiro de guerrilha no centro-sul de Los Angeles. Palestra proferida no TED2013. Disponível em: https://www.ted.com/talks/ron_finley_a_guerrilla_gardener_in_south_central_la/details?utm_source=facebook.com&utm_medium=social&utm_campaign=tedspread&fbclid=IwAR2REYxxlsnkiXE5Cv1eBNMfJeLfIWL0KJDlaAgTpp-WV82ap2xqTOQCstY. Acesso em 09 julho de 2020.

GRANDI, Telma Sueli. Mesquita. Tratado das plantas medicinais: mineiras, nativas e cultivadas. 1. Ed – Dados eletrônicos. Belo Horizonte: Adaequatio Estúdio, 2014.


LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Tradução Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. (Coleção A Política no Império). ISBN 85-200-0736-8. 





[1] Texto de encerramento da Disciplina Poéticas Contemporâneas I – Estéticas Emergentes na cidade, ministrada pela Prof.ª Dr.ª Maria Thereza de Oliveira Azevedo – PPG ECCO – UFMT.
[2] Mestranda pelo Programa de PPG em Estudos de Cultura Contemporânea, orientanda da Prof.ª Dr.ª Maria Thereza de Oliveira, Bolsista CAPES. E-mail: karinaconfrade@gmail.com.










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