Claudyanne Rodrigues de Almeida
Resumo: O desafio era colher depoimentos sobre o pós-peste, desejos e sonhos possíveis para o novo mundo pós a pandemia de 2020 que estamos vivenciando. Sabemos que sempre de um caos nasce o novo; impulsionando forças positivas para a gestação desse novo, esse trabalho surge para dar voz a desejos e esperanças de experimentar um mundo mais justo e até no rememorar utopias, ter coragem de ecoá-las de forma a fomentar engrenagens de esperança em meio ao desânimo persuasivo. O presente ensaio busca refletir a proposta de intervenção virtual a partir de alguns textos e, sob o prisma dos sonhos, da memória, a possibilidade de contaminar os desejos pelo ecoar das narrativas.
Nas
palavras consta amores, indignações, inspirações, medos, força, certezas,
dúvidas, sabedorias, métodos, desejos, muitos desejos... e sonhos, possíveis, e
uns, nem tanto. O fato é que o próprio exercício de refletir sobre o mundo
pós-pandemia, realizou um trabalho de afetar para se antecipar à gestação desse
novo mundo por forças positivas que pensam na vida e na coletividade antes de
outras forças que coloniza os pensamentos e gesta a morte. Em meio ao caos, as
incertezas, várias forças se articulam para definir o que será a nova
normalidade. Nesse processo, a democracia fica numa corda bamba, principalmente
no Brasil que já demonstrava cenário de insegurança para a democracia e para a
vida. Paola Hori (2016, s/p) lembra que “se faz necessário resgatar a essência
e função primordial do espaço público como espaço de troca e como cenário da diversidade
e da democracia”. Assim, as intervenções virtuais, a contaminar o espaço das
redes com propostas, desejos e sonhos populares parece uma ideia providencial
para o momento instável, pandêmico e caótico do agora.
A urbanista Ermínia Maricato reflete a melancolia na
coletividade, melancolia social. A vida
urbana revela desencanto e solidão, desde antes da pandemia. Quando a apresentadora
cita o exemplo de Walter Benjamin ela conclui que o melancólico traiu suas
perspectivas de luta. Optou por seguir “o cortejo dos vencedores”. Seria o que
Benjamin se recusa, assim como os coletivos urbanos, os artistas, as
associações de bairro que resistem à lógica capitalista da cidade nos seus
planejamentos urbanos centrados na especulação imobiliária e criação de espaços
de consumo, cultura do consumo, ou como diz Seldin (2015) “culturalização
urbana”. Muitos depoimentos trouxeram questões como essas. Depoimentos esses que
relembrou a força do trabalhador que produz toda riqueza do mundo, pois a
pandemia provou que sem seu trabalho a economia do mundo colapsou. Relembrou a
importância de pensar nos animais, muitas pandemias e epidemias decorre do uso
de animais para nosso prazer (o morcego, o porco o frango, etc.). Do meio ambiente
em geral, que retorna a colheita do descaso que plantamos nele. Muitos desejaram
a diminuição da concorrência, do tempo de trabalho, da violência. A política
neoliberal que privatizou as economias e as vidas. Nos países com menos
serviços públicos colapsou mais, mais rápido ou demorou mais para controlar a
pandemia. Artistas, crianças e populares pautaram que a pandemia lembrou que se
um não está bem, ninguém estará. A necessidade e a força do coletivo ressoaram
nas narrativas. Assim, retomamos textos que fala sobre coletivos urbanos.
A
ideia da organização de coletivos urbanos que alguns textos da disciplina
trouxeram são fundamentais para essa perspectiva. Os coletivos citados por
Paula Hori (2016) foram práticas que modificam e valorizam o espaço público de
forma democrática, já que pesquisaram os ‘sonhos’ dos moradores para o bairro,
mas também chamam atenção do poder público para sua obrigação para com aqueles
espaços e população. “Valorizar os
espaços públicos adequando-os às necessidades dos usuários através da
participação ativa das comunidades para que esses espaços se tornem, de fato,
favoráveis à felicidade” (LEFEBVRE apud HORI,
2016, s/p).
Muitos depoimentos da nossa intervenção virtual toca
na questão da coletividade, de democracia participativa e ativa e também uma
certa nostalgia ao pensar em qualidade de vida. Harvey (apud SELDIN, p. 70) diz que “a qualidade de vida se tornou uma
mercadoria para aqueles com dinheiro”.
Entretanto, a autora elucida que não está apenas na desigualdade de classe,
pois, antes desse processo de culturização,
jogar bolinha de gude e brincar na rua eram sinônimos de qualidade de vida ou,
ao menos, de não melancolia. Porém, com a mercantilização do lazer urbano e o
avanço tecnológico, jogar bolinha de gude já não faz parte dos hábitos de
consumo “modernos”, não faz parte da cultura da moda, ou estilo de vida. A
cultura da moda está nas montagens cada vez mais elitizadas da cidade, cada vez
mais distantes das comunidades. Reduzindo assim, até o desejo por gostos
culturais simples, mas outrora feliz/não melancólico. E aqui outro ponto dos
depoimentos: vamos começar valorizar mais coisas simples, momentos com o outro,
valorizar mais a presença, pois na pandemia perdemos muito tempo da na frente
de telas e problemas tecnológicos, disseram alguns participantes.
Se
o Direito a propriedade está subordinado à função social da propriedade e da
sociedade, desde a Constituição, a urbanista deixa pista de que uma das formas
de mudar a vida da cidade é se empoderar da lei. Esse é o mot que os coletivos
de artistas na Alemanha pós guerra fria aproveita para criar os squats (SELDIN, 2015). Os squats são estudados no texto como insurgências urbanas, uma vez que se
baseiam em lutas pelo direito à moradia, contra a gentrificação ou a opressão
do sistema vigente. Foram “uma
apropriação dos espaços de cidadania insurgente para a formação específica de
uma imagem de cidade”. (SELDIN, 2015,
p.75) A ideia de Florida sobre a
necessidade de ter nos planejamento urbanos captação
de autenticidade locais, vai de encontro com os primeiros textos, sobre a corpografia urbana, na medida em que
clama pela memória dos corpos reais também estarem presentes na cidade, além do
contrário.
Ambos
os exemplos aproximam a criatividade como fonte fundamental de transformação do
cenário urbano, como potencialidade de crítica e de apropriação, principalmente
a partir de voltar o olhar para os SONHOS dos citadinos reais.
Para o autor Magnavita (2012, p. 27) “Cultura é
justamente a multiplicidade de saberes que compõem a cidade”. Esses saberes se
entrecruzam. Ao que parece, alguns ganham mais espaço ou mais voz em
determinado território da cidade, outros menos, mas se faz em movimento
dinâmico. Chimamanda nos alerta para o perigo da história única, pois ela se
relaciona com os espaços de poder, com a forma de pensar dominante. Ou mesmo,
com o força de sua voz/cultura/experiência de ecoar, num livro ou num saber
popular, em diversas zonas da cidade/mente coletiva. Se para Magnavita (2012) a
diversidade de saberes enriquece a cidade, fica a reflexão se então a história
única e o pensamento colonizado poderia empobrecer, já que não abre território
de passagem para a diversidade, consequentemente para novas experiências e
aproximação das corpografias locais, espaço para criação e recriação de si. As
corpografias e o desafio de pensar o mundo pós pandemia são processos geradores
de sentidos, geradores de narrativas.
Me parece que a reflexão de vários textos e de
vários depoimentos se interconectam principalmente a partir da experiência do
corpo na cidade e o espaço para a criação, para uma poética da cidade e dos
citadinos. Para Deleuze a materialidade do conceito de significante/significado
é o maior empecilho para o processo de desterritorialização, para o abrir-se
para criar e para o devir. (apud
MAGNAVITA, 2012) Reflexão essa que vai de encontro com Chimamanda e a urgência
da decoloniadade, já que os significantes e significados são construídos no
território colonizado, e tende a reproduzir a história única do
colonizador. Abrir-se para desejar e
criar, para o devir, que só acontece com Chimamanda quando ela descobre autores
nigerianos, tiram-na daquele território de colonização da mente e ela cria a
partir do conhecimento de si, das corpografias locais, e as exalta, ecoa voz, gesta um novo pulsar. Dá ares
de que a criação emerge das diferenças, das possibilidades de diferença. Pensar
o corpo visceral autêntico é desviar da história única, é dar voz aos que só
ouviam. Tal como a experiência de sonhar um mundo possível pós-pandemia, melhor
que lamentar o empobrecimento da experiência, importa suscitar nesses corpos o
desejo do porvir, de criar, como recomenda Deleuze: “a construção de corpos
desejantes, em que o desejo não é carência, mas, Acontecimento, Criação.” (apud MAGNAVITA, Ibid, p. 31), Esse é o ano que para além de gestarmos a mudança, nos tornamos a mudança.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BRITTO, Fabiana Dultra; JACQUES, Paola Berenstein. Cenografias e corpografias urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade. In: Cadernos PPGAU/UFBA. Ano 6, número especial, 2008, p. 79-86. Salvador: PPGAU/UFBA, 2008.
HORI, Paola. Práticas urbanas inovadoras, insurgentes, democráticas.
In: XI. Colóquio QUAPÁ-SEL,
2016, Salvador. Anais.
Lazzarato, Maurizio. As
revoluções do capitalismo. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
MAGNAVITA, Pasqualino Romano. Cidade, cultura, corpo
e experiência. In: Revista Redobra. Salvador: Cian Gráfica e Editora Ltda, v.
10 p.27-32. Out./2012.
MENDES,
Eloísa Brantes. Cidades Instáveis: Intervenção Artística Como Experiência
Heterotópica Do Espaço Urbano. In: O Percevejo online v. 4 n° 2. PPGAC/UNIRIO.
2012.
SELDIN,
Cláudia. Práticas culturais como insurgências urbanas: o caso do Squat
Kunsthaus Tacheles em Berlim. Rev. Bras. Estud. Urbanos Reg., v.17, n.3, p.68-
85, Recife, set./dez. 2015.
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