Maidi
Leonice Dickmann[1]
Diante do quadro de isolamento
social não foi possível fazer uma intervenção urbana como vinha sendo realizada
nos anos anteriores na disciplina Tópicos Especiais em
Poéticas Contemporâneas: Estéticas emergente da cidade/ECCO/UFMT, ministrada
pela Profa. Dra. Maria Thereza Azevedo. Sendo assim, a proposta foi adaptada à
atual situação, que consistiu em coletar depoimentos de pessoas, com registros
por meio digital, para investigar o que elas estavam fazendo para criar um
outro mundo possível pós-pandemia.
Dentro desta proposta, eu convidei sete
amigos para participar do trabalho, cujo roteiro foi enviado no final do mês de
maio do corrente com as seguintes perguntas: O que você projeta pós-pandemia? O
que você está querendo? (possibilidades de outras formas de viver) O que você
está mudando com a pandemia? Recebi retorno de cinco deles entre os dias 31 de
maio e 08 de junho.
Quando ouvi os vídeos, notei que três
interlocutores pensavam de forma parecida, que uma delas citou as ações e
registou o passo-a-passo de como executar essas ações, e outra, intensificou as
ações que já vinha desenvolvendo nos últimos anos em ONGs junto às famílias
autônomas e/ou de baixa renda.
Analisando as respostas dos cinco interlocutores,
percebi que a maior preocupação, naquele instante, era: cuidados pessoais para
não serem contaminados pelo vírus e um sentimento afetivo maior pela família,
pelo próximo, pela natureza e pelos animais. Por serem respostas bastante
semelhantes, me despertaram curiosidade, me levando a duas conclusões: 1) Eu
convidei pessoas amigas da mesma área de conhecimento, atuantes e/ou amantes da
arte (músicos e artistas plásticos). Logo, a forma como organizam e apresentam
os pensamentos são parecidos. Dentre os interlocutores, somente um não tem
contato direto com a arte, mas convive com pessoas da área e, também, adotou um
estilo de vida mais natural e saudável. 2) Quando os registros foram feitos
ainda estávamos nos adaptando com o isolamento social e a nova forma de viver. As
ideias de outras possibilidades de vida ainda não tinham sido experimentadas.
Tínhamos inúmeras informações diárias sobre o atual momento - verdadeiras e
Fake News -, e a partir dali formamos opiniões, mas não sabíamos o que podíamos
fazer naquele momento, exceto, seguir as recomendações da OMS para prevenir da
Covid-19. Fomos “pegos de surpresa”, pois não tínhamos experiências para lidar
com uma pandemia. Sobre o pensar Bondía (2002, p.21) fala: “...pensar não é
somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou ‘argumentar’, como nos tem sido ensinado
algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece”,
e todos nós estávamos tentando dar sentido à nova vida.
Também observei que todos os interlocutores
abordaram a questão do grande consumo de bens materiais, definida pela dinâmica
capitalista, que estipula o que os corpos podem e não o que os corpos querem,
como cita Azevedo (2017, p.11): “O sistema capitalista que determina os espaços
das cidades, seus fluxos e as nossas vidas, vem há tempos construindo o que
Guattari (2008) chama de uma subjetividade capitalística”. Os interlocutores se
referiram ao momento como: “um tempo de transformação”, “menos consumo”,
“apreciação aos valores...dinheiro é uma convenção” e “não precisamos de tanto
para viver”, ou seja, no momento que a humanidade interrompeu, abruptamente, o
seu cotidiano, ficando isolado nas suas “cavernas”, percebeu que existem outras possibilidades
de vida. Essas falas me remetem ao pensamento de Magnovita quando ele fala
das Sociedades de Controle, que somos controlados por uma sociedade de consumo de
bens materiais, orientadas para o Ter e não para o Ser. Ele declara:
“Basicamente,
os diferentes corpos encontram-se imersos, para não dizer afogados no oceano do
marketing e seduzido pelos efeitos pirotécnicos das mídias, que os mantêm
cativos pela ‘coleira eletrônica’ (Deleuze), e, diríamos, atualizando a imagem
deleuzeana, corpos rastreados por diferentes chips das Sociedades de Controle”
(MAGNOVITA, 2012, p.31)
Orientados pelo sistema capitalista,
os comportamentos, as atitudes, as ações das pessoas se repetem, quase
automaticamente, sem levar em consideração as diferenças das pessoas e a
criatividade delas (MAGNOVITA, 2012, p.30), e como fala Chimamanda ADICHIE no
vídeo Os perigos de uma história única: “A consequência de uma única
história cria estereótipos. Elas são incompletas e fazem uma história tornar-se
a única história. Uma única história rouba das pessoas sua dignidade”.
Como mencionei anteriormente, um dos
interlocutores citou as ações e registou o passo-a-passo das possibilidades de outras
formas de viver, ajudando pessoas com necessidades materiais na pandemia com
doações de alimentos – para humanos e para cachorros –, cobertores, produtos de
higiene e limpeza, material escolar e sementes de hortaliças. Ele também
registou como fazer uma horta orgânica em casa, com baixo custo, usando
materiais recicláveis. Essa última ação me remeteu à algumas ações que já estão
sendo desenvolvidas no Brasil e em outros países, como exemplo, o vídeo do
jardineiro Ron Finley, de Los Angeles/EUA. São ações que poderiam ser aderidas
aqui em Cuiabá/MT, principalmente nos bairros, fazendo jardins e hortas,
coletivamente, fornecendo nutrição, capacitação e educação ao bairro. Essa ação
também daria continuação da própria corporalidade dos habitantes, como
mencionam Britto e Jacques (2008, p.79): “Reconhecendo a cidade como um
ambiente do corpo, que tanto promove quanto está implícita nos processos
interativos geradores de sentido implica reconhecê-la como fator de
continuidade da própria corporalidade de seus habitantes.”
A interlocutora que intensificou o
trabalho que já vinha desenvolvendo nos últimos anos em ONGs, como falei no
terceiro parágrafo, são: recolher garrafas pet e outros vasilhames de plástico
para reciclagem, recolher óleo de cozinha usado para fazer sabão, adquirir, por
meio de doações, roupas, calçados, cobertores e alimentos para doar às famílias
carentes. Essa ação remete ao pensar de Azevedo (2017, p.13), quando fala em
criar ‘campo de possíveis’: “...ensaiar encontros, acolher urgências, descobrir
processos, experimentar afetos, delinear outros fluxos, inventar caminhos,
viver experiências e discussões sobre o que pode vir a ser a cidade que
imaginamos e desejamos.”
Percebo que os meus interlocutores, no momento da
coleta dos dados, estavam se organizando para novas possibilidades de vida.
Eles estavam confrontando os valores dominantes e refletindo sobre como
poderiam criar novas realidades, rompendo normas, regras e hábitos seguidos até
então, como elucida Lazzarato (2006, p.46): “A criação requer uma libertação
parcial do indivíduo em relação à sociedade, o rompimento momentâneo do tecido
de mútuas ilusões sociais, do véu de influências intermentais”. Como eles, eu
também estou vivendo esse momento atípico. Em meio ao medo, angústias,
questionamentos e perdas de amigos, estou vivendo um momento único, de muita
reflexão sobre valores materiais e afetivos (o que realmente preciso para
viver), de cuidados com a saúde física e mental, de descobertas gastronômicas, de
aprendizado intelectual através de lives de várias áreas do conhecimento. Estou
passando por um processo de modulação. Vale dizer que estou amando esse
momento. Percebo que é um momento de acreditar que não somos marionetes e não
estamos acorrentados. Estamos nos fortalecendo para ter outras possibilidades
de vida.
REFERÊNCIAS:
ADICHIE,
Chimamanda. Os perigos de uma história única. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY>. Acesso em: 17
de jul. 2020.
AZEVEDO, Maria
Thereza. Cidade Possível, ou, como podemos criar outros modos de estar no mundo.
In: AZEVEDO, Maria Thereza, Cidade possível, 100 em 1 dia Cuiabá:
pensar, experimentar e reencantar a cidade. 1ª ed. Curitiba/PR: CRV, 2017, pp.
11-22.
BONDÍA, Jorge
Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira
de Educação, nº 19, jan-abr, 2002, pp. 20-28.
BRITTO, Fernanda
D.; JACQUES, Paola B. Cenografias e Corpografias urbanas: um diálogo sobre as
relações entre corpo e cidade. In.Cadernos PPG-AU/UFBA. Vol. 7, edição
especial, 2008, pp. 79-86.
FINLEY, Ron. A
guerrilla gardender in South Central LA. Disponível em: <https://www.ted.com/talks/ron_finley_a_guerrilla_gardener_in_south_central_la?utm_source=facebook.com&utm_medium=social&utm_campaign=tedspread&fbclid=IwAR2REYxxlsnkiXE5Cv1eBNMfJeLfIWL0KJDlaAgTpp-WV82ap2xqTOQCstY>. Acesso em:
13 de jul. 2020.
LAZZARATO,
Maurizio. As revoluções do capitalismo. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006.
MAGNOVITA,
Pasqualino Romano. Cidade, Cultura, Corpo e Experiência. Revista Contraponto,
v. 10, 2012, pp. 27-32.
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