sexta-feira, 17 de julho de 2020

NÃO SOMOS MARIONETES. NÃO ESTAMOS PRESOS POR COLEIRAS ELETRÔNICAS. HÁ OUTRAS POSSIBILIDADES DE VIDA



                                                                                                             Maidi Leonice Dickmann[1]

            Diante do quadro de isolamento social não foi possível fazer uma intervenção urbana como vinha sendo realizada nos anos anteriores na disciplina Tópicos Especiais em Poéticas Contemporâneas: Estéticas emergente da cidade/ECCO/UFMT, ministrada pela Profa. Dra. Maria Thereza Azevedo. Sendo assim, a proposta foi adaptada à atual situação, que consistiu em coletar depoimentos de pessoas, com registros por meio digital, para investigar o que elas estavam fazendo para criar um outro mundo possível pós-pandemia.
            Dentro desta proposta, eu convidei sete amigos para participar do trabalho, cujo roteiro foi enviado no final do mês de maio do corrente com as seguintes perguntas: O que você projeta pós-pandemia? O que você está querendo? (possibilidades de outras formas de viver) O que você está mudando com a pandemia? Recebi retorno de cinco deles entre os dias 31 de maio e 08 de junho.
            Quando ouvi os vídeos, notei que três interlocutores pensavam de forma parecida, que uma delas citou as ações e registou o passo-a-passo de como executar essas ações, e outra, intensificou as ações que já vinha desenvolvendo nos últimos anos em ONGs junto às famílias autônomas e/ou de baixa renda.
Analisando as respostas dos cinco interlocutores, percebi que a maior preocupação, naquele instante, era: cuidados pessoais para não serem contaminados pelo vírus e um sentimento afetivo maior pela família, pelo próximo, pela natureza e pelos animais. Por serem respostas bastante semelhantes, me despertaram curiosidade, me levando a duas conclusões: 1) Eu convidei pessoas amigas da mesma área de conhecimento, atuantes e/ou amantes da arte (músicos e artistas plásticos). Logo, a forma como organizam e apresentam os pensamentos são parecidos. Dentre os interlocutores, somente um não tem contato direto com a arte, mas convive com pessoas da área e, também, adotou um estilo de vida mais natural e saudável. 2) Quando os registros foram feitos ainda estávamos nos adaptando com o isolamento social e a nova forma de viver. As ideias de outras possibilidades de vida ainda não tinham sido experimentadas. Tínhamos inúmeras informações diárias sobre o atual momento - verdadeiras e Fake News -, e a partir dali formamos opiniões, mas não sabíamos o que podíamos fazer naquele momento, exceto, seguir as recomendações da OMS para prevenir da Covid-19. Fomos “pegos de surpresa”, pois não tínhamos experiências para lidar com uma pandemia. Sobre o pensar Bondía (2002, p.21) fala: “...pensar não é somente ‘raciocinar’ ou ‘calcular’ ou ‘argumentar’, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece”, e todos nós estávamos tentando dar sentido à nova vida.
             Também observei que todos os interlocutores abordaram a questão do grande consumo de bens materiais, definida pela dinâmica capitalista, que estipula o que os corpos podem e não o que os corpos querem, como cita Azevedo (2017, p.11): “O sistema capitalista que determina os espaços das cidades, seus fluxos e as nossas vidas, vem há tempos construindo o que Guattari (2008) chama de uma subjetividade capitalística”. Os interlocutores se referiram ao momento como: “um tempo de transformação”, “menos consumo”, “apreciação aos valores...dinheiro é uma convenção” e “não precisamos de tanto para viver”, ou seja, no momento que a humanidade interrompeu, abruptamente, o seu cotidiano, ficando isolado nas suas “cavernas”, percebeu que existem  outras possibilidades de vida. Essas falas me remetem ao pensamento de Magnovita quando ele fala das Sociedades de Controle, que somos controlados por uma sociedade de consumo de bens materiais, orientadas para o Ter e não para o Ser. Ele declara:

“Basicamente, os diferentes corpos encontram-se imersos, para não dizer afogados no oceano do marketing e seduzido pelos efeitos pirotécnicos das mídias, que os mantêm cativos pela ‘coleira eletrônica’ (Deleuze), e, diríamos, atualizando a imagem deleuzeana, corpos rastreados por diferentes chips das Sociedades de Controle” (MAGNOVITA, 2012, p.31)


            Orientados pelo sistema capitalista, os comportamentos, as atitudes, as ações das pessoas se repetem, quase automaticamente, sem levar em consideração as diferenças das pessoas e a criatividade delas (MAGNOVITA, 2012, p.30), e como fala Chimamanda ADICHIE no vídeo Os perigos de uma história única: “A consequência de uma única história cria estereótipos. Elas são incompletas e fazem uma história tornar-se a única história. Uma única história rouba das pessoas sua dignidade”.
            Como mencionei anteriormente, um dos interlocutores citou as ações e registou o passo-a-passo das possibilidades de outras formas de viver, ajudando pessoas com necessidades materiais na pandemia com doações de alimentos – para humanos e para cachorros –, cobertores, produtos de higiene e limpeza, material escolar e sementes de hortaliças. Ele também registou como fazer uma horta orgânica em casa, com baixo custo, usando materiais recicláveis. Essa última ação me remeteu à algumas ações que já estão sendo desenvolvidas no Brasil e em outros países, como exemplo, o vídeo do jardineiro Ron Finley, de Los Angeles/EUA. São ações que poderiam ser aderidas aqui em Cuiabá/MT, principalmente nos bairros, fazendo jardins e hortas, coletivamente, fornecendo nutrição, capacitação e educação ao bairro. Essa ação também daria continuação da própria corporalidade dos habitantes, como mencionam Britto e Jacques (2008, p.79): “Reconhecendo a cidade como um ambiente do corpo, que tanto promove quanto está implícita nos processos interativos geradores de sentido implica reconhecê-la como fator de continuidade da própria corporalidade de seus habitantes.”
            A interlocutora que intensificou o trabalho que já vinha desenvolvendo nos últimos anos em ONGs, como falei no terceiro parágrafo, são: recolher garrafas pet e outros vasilhames de plástico para reciclagem, recolher óleo de cozinha usado para fazer sabão, adquirir, por meio de doações, roupas, calçados, cobertores e alimentos para doar às famílias carentes. Essa ação remete ao pensar de Azevedo (2017, p.13), quando fala em criar ‘campo de possíveis’: “...ensaiar encontros, acolher urgências, descobrir processos, experimentar afetos, delinear outros fluxos, inventar caminhos, viver experiências e discussões sobre o que pode vir a ser a cidade que imaginamos e desejamos.”
Percebo que os meus interlocutores, no momento da coleta dos dados, estavam se organizando para novas possibilidades de vida. Eles estavam confrontando os valores dominantes e refletindo sobre como poderiam criar novas realidades, rompendo normas, regras e hábitos seguidos até então, como elucida Lazzarato (2006, p.46): “A criação requer uma libertação parcial do indivíduo em relação à sociedade, o rompimento momentâneo do tecido de mútuas ilusões sociais, do véu de influências intermentais”. Como eles, eu também estou vivendo esse momento atípico. Em meio ao medo, angústias, questionamentos e perdas de amigos, estou vivendo um momento único, de muita reflexão sobre valores materiais e afetivos (o que realmente preciso para viver), de cuidados com a saúde física e mental, de descobertas gastronômicas, de aprendizado intelectual através de lives de várias áreas do conhecimento. Estou passando por um processo de modulação. Vale dizer que estou amando esse momento. Percebo que é um momento de acreditar que não somos marionetes e não estamos acorrentados. Estamos nos fortalecendo para ter outras possibilidades de vida.

REFERÊNCIAS:
ADICHIE, Chimamanda. Os perigos de uma história única. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY>. Acesso em: 17 de jul. 2020.

AZEVEDO, Maria Thereza. Cidade Possível, ou, como podemos criar outros modos de estar no mundo. In: AZEVEDO, Maria Thereza, Cidade possível, 100 em 1 dia Cuiabá: pensar, experimentar e reencantar a cidade. 1ª ed. Curitiba/PR: CRV, 2017, pp. 11-22.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, nº 19, jan-abr, 2002, pp. 20-28.

BRITTO, Fernanda D.; JACQUES, Paola B. Cenografias e Corpografias urbanas: um diálogo sobre as relações entre corpo e cidade. In.Cadernos PPG-AU/UFBA. Vol. 7, edição especial, 2008, pp. 79-86.


LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

MAGNOVITA, Pasqualino Romano. Cidade, Cultura, Corpo e Experiência. Revista Contraponto, v. 10, 2012, pp. 27-32.



[1] Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em estudos de Cultura Contemporânea/ECCO/UFMT.


 









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